“Os brutos também amam”
(Mara Senna)
Era uma destas tardes quentes e secas que tem feito ultimamente.
Eu estava sufocada pela poeira que teimava em penetrar pelas minhas narinas, meus poros e por que não dizer, pela minha alma. A fuligem da cana insistia em entrar, mesmo com portas e janelas fechadas, feito a tristeza quando pega a gente de jeito e entra por qualquer fresta.
Meu corpo estava letárgico e eu mais me sentia um daqueles habitantes do deserto. Só me faltava o camelo...
Naquela indolência, nada parecia me despertar e a única coisa a fazer, era ir até a janela procurar por algum sinal, ainda que remoto, da tão esperada chuva.
Foi quando eu avistei em meio a essa paisagem árida, no terreno baldio ao lado de casa, uma cena um tanto terna e inédita para os meus olhos de meia-idade: um casal de gaviões enamorado, ocupado em um verdadeiro idílio.
Que me perdoem se pareço tola, sei que gaviões acasalam-se, mas até então, eu confesso que já havia visto beija-flores namorando pelo ar, casais de pombinhos arrulhando e toda a sorte de passarinhos aos pares, em atitudes enlevadas; mas gaviões, nunca!
Para mim, o gavião sempre foi tão somente aquele pássaro com a cara amarrada, de ares um tanto militares, caçador ágil de presas indefesas. Até nas canções de infância eu aprendi a ter muito medo do gavião...
Por isso a surpresa, por isso o despertar deste sentimento de ternura que me invadiu ao vê-los assim, aves sempre tão vigilantes, ali, distraídos e vulneráveis como o são os amantes.
Talvez, nessa hora, estivesse suspirando aliviado algum rato desavisado ou algum passarinho desatento que ousou passar por ali. Até a coruja buraqueira, mãe zelosa, permitiu que seus filhotes pusessem as suas cabeças com olhos enormes para fora da toca, confiante que estava na distração amorosa do casal. Todos se sentiam momentaneamente protegidos por esta estranha magia que hipnotizava aqueles seres.
Eu atestava através daquele casal de gaviões, a veracidade do título de um antigo filme de faroeste e também de uma velha música que eu ouvia no rádio na minha infância: “Os brutos também amam”. A letra da música explicava: “No mundo triste de onde eu vim/ Nada disso tem valor/ Nele tudo se embrutece/ Mas o coração esquece/ Quando tem um grande amor.”
Aquele amor dos gaviões na aridez da tarde, realmente parecia desembrutecer tudo ao seu redor. E então eu pensei: não é assim também o amor entre os seres humanos, essa pausa em meio à dureza das coisas, um alento em meio à desolação do mundo?
Porém, para minha frustração, tal qual miragem no deserto, a delicada cena se desfez abruptamente. Uma vez garantida a preservação da espécie e findo o encantamento, os gaviões voltaram mais que depressa à sua missão de rapinar neste mundo. À cena de romance sucedeu-se uma cena de horror: num piscar de olhos, um dos gaviões (não sei se o macho ou a fêmea) já tinha em suas garras um dos filhotinhos desatentos da coruja, para desespero da mãe, que, entre assustada, furiosa e certamente arrependida do descuido, rapidamente ocultou os demais.
Senti muita compaixão do pobre bichinho... Meu coração enegreceu como a fuligem das queimadas. A tarde parecia ter ficado mais árida do que antes.
Fiquei um bom tempo olhando pela janela, sentindo muita raiva do gavião. Contudo, eis que me acorreu a letra de outra antiga canção, e esta dizia assim: “Eu sei que eu tenho um jeito/ meio estúpido de ser/... mas cada um/ tem o seu jeito/ todo próprio de amar /e de se defender...” Sim, aquele era “o jeito” do gavião.
Compreendi, afinal, que os brutos podem até amar, mas jamais vão negar a sua própria natureza.
Nota: esta minha crônica recebeu o terceiro lugar no II Concurso Literário de Crônicas da Academia de Letras e Artes de Ribeirão Preto - ALARP, em 2010.
Querida Mara,
ResponderExcluirLinda crônica; você mereceu este destaque! Parabéns.
Obrigada, Cecília. Partindo de alguém que escreve bem como você, o elogio fica ainda maior. Bjs
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