Sem conserto
Logo de manhã, ouço o som inusitado do alto-falante do carro que passa pelo meu quarteirão. Ele vai anunciando em uma gravação de qualidade duvidosa e um pouco irritante, que conserta panelas de todos os tipos: caçarolas, frigideiras, panelas de pressão... Oferece novos cabos, novas tampas, conserta furos, devolve o brilho, enfim, resolve tudo. O anúncio parece promissor e redentor para aquelas panelas do meu armário, já tão gastas pelo uso.
Não tenho como não acalentar, neste momento, o desejo secreto de um carro que também passasse logo cedo resolvendo todos os meus problemas; anunciando, em alto e bom som, que poderia consertar tudo aquilo que está errado ou faltando em minha vida. Uma espécie de gênio da lâmpada, só que concedendo não só três, mas todos os desejos que eu quisesse.
Engana-se quem pensa que eu pediria coisa materiais. Não. Para essas coisas sempre se dá um jeito, trabalha-se, conquista-se. Eu pediria coisas mais difíceis; aquelas que escapam à nossa capacidade humana de resolver a contento. Falo do campo das emoções, dos sentimentos, das coisas da alma.
E assim, eu imagino um carro passando todas as manhãs, anunciando poder consertar um coração que foi quebrado em mil pedaços, prometendo deixá-lo novinho em folha. Ofereceria novas peças para repor as partes mais machucadas, a restauração completa dos sentimentos mais feridos, supriria faltas, ausências e saudades, resolveria carências, frustrações e desilusões. ‘Qual é o seu tipo de dor? – nós temos a solução!’, seria o seu bordão.
Porém, depois desse breve devaneio, volto à minha lucidez habitual e me pego pensando se isso não deixaria a vida um tanto quanto monótona e sem graça. Porque vejo que são todas estas emoções que nos movem, que nos fazem sentir vivos. Só o que está vivo dói. Só o que está vivo se arrisca em meio às coisas e por isso se machuca.
Consertar tudo assim tão fácil seria querer invadir o campo da divindade, adquirir onipotência. E o ser humano não foi criado para isso. Não temos vocação para deuses ou semideuses. Nascemos assim, com o coração de carne. Mortais e falíveis e, por isso mesmo, tão complexos e tão interessantes com nossos defeitos e qualidades.
Fazendo ainda a analogia com as panelas, vejo aqui na minha cozinha que as panelas mais gastas, as mais usadas, as que trazem em seu fundo aquela marca de uso cotidiano, são as que mais sabor conferem ao alimento. Não estão mais tão bonitas, é verdade, mas guardam em si a lembrança dos temperos e a valiosa experiência de terem passado várias vezes pelo fogo. Desse modo, também nós. Passamos muitas vezes pelo fogo das adversidades e somos temperados pelas vicissitudes. Experimentamos o doce e o amargo, o insípido e o salgado demais e vamos aprendendo o delicado tempero da sabedoria.
No cozer da vida, vamos deixando pedaços nossos ao longo do caminho para que outras vidas aconteçam. Vamos perdendo o frescor da juventude, o brilho do novo, a beleza exterior, mas adquirimos essa capacidade de dar mais sabor à existência com as nossas vivências. Apagar as marcas deixadas em nossas “panelas” seria como negar a nossa própria história.
Continuo a ouvir o som insistente do carro das panelas passando pelo meu quarteirão, mas agora vejo claramente que não quero mais que alguém passe consertando tudo. Quero que a vida faça em mim a sua trajetória natural e bonita.
Não há problema se por aí ficarem partes minhas e que não haja reposição para elas. Deixo assim, sem conserto. E vejo o quanto sou humana e... feliz!
Não há problema se por aí ficarem partes minhas e que não haja reposição para elas. Deixo assim, sem conserto. E vejo o quanto sou humana e... feliz!
Mara Senna
Mara , muito bom, gostei . É o incômodo que nos move, é fisiológico. É na hora que a gente abre o capô do carro para o conserto que começamos a nos interessar pelas suas entranhas.Beijo
ResponderExcluirComo as panelas velhas ,o carro fundido.nosso corpo tambem trás marcas do tempo.Nossas rugas,cabelos brancos e cicatrizes,que contam nossa história.Essas marcas que transformam e enriquecem nossa alma.
ResponderExcluirLinda a crônica. Há nela um toque de lirismo reflexivo ao transformar e exaltar com mestria um simples evento. Através do seu estado de alma relata uma indivisível experiência pessoal.
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