Após 10 anos de silêncio poético, a minha poeta preferida e uma de nossas maiores poetas vivas, a mineira Adélia Prado, lançou "A Duração do Dia" pela editora Record. Adquiri este livro como o meu mais novo e precioso tesouro.
O belo e significativo título "A duração do Dia", nos remete a um certo "carpe diem", como que nos alertando sobre a brevidade ou a transitoriedade da vida.
A capa, ao mesmo tempo simples e bela, traz um trabalho do surrealista René Magritte que estampa uma vela acesa e ereta entre os ovos de um um ninho, representando o a oscilação entre o sagrado e o erótico, tão bem trabalhado pela poesia de Adélia.
Na epígrafe do livro encontramos um fragmento de Czeslaw Milosz que de certo modo sintetiza as preocupações poéticas de Adélia: “Em sua essência, a poesia é algo horrível:/ nasce de nós uma coisa que não sabíamos que está dentro de nós,/ e piscamos os olhos como se atrás de nós tivesse saltado um tigre,/ e tivesse parado na luz, batendo a cauda sobre os quadris”. "Essa relação não racional e de algum modo ligada aos aspectos do mistério, do divino e do banal, revestido pelo epifânico, fazem parte do melhor que Adélia Prado tem a oferecer aos seus leitores."
No livro encontramos os temas recorrentes em sua escrita, como a vida provinciana (já nem tão provinciana assim), a religiosidade, o cotidiano. Ela nos revela perplexidade, fé e um fino humor. (Como boas senhoras brincam as marrecas,/ falsas mofinas debicando nos filhos." ou "Olho grande deve ter Deus/ para enxergar num só lance....").
Como em outros livros da autora, os poemas são precedidos por citações biblicas. "Mas a poeta fala a partir de sua casa, de seus interiores e, como diria Quintana, a poeta mora em si. Seus arredores são apenas matéria-prima que ela molda em palavras para compor com insólita simplicidade as suas impressões. O dia do poeta é feito de imagens, de olhares, de lembranças, de suposições... "
Plena de religiosidade e de humanidade (como nunca, a meu ver), aos 75 anos a poeta continua cuidando de sua alma, como ensina Santa Tereza: como um castelo interior. Mas neste livro a poeta parece ter -se voltado também para o seu corpo (Meu coração/ é a pele esticada de um tambor./ Como tentação a dor percute nele,/ travestida de dor, para que eu desista,/ duvide de que tenho um pai." ou "Meu corpo me ama e quer reciprocidade.").
Adélia poeta continua a mesma : sorte nossa!
Leia abaixo o primeiro poema do livro:
Tão bom aqui
Me escondo no porão
para melhor aproveitar o dia
e seu plantel de cigarras.
Entrei aqui pra rezar,
agradecer a Deus este conforto gigante.
Meu corpo velho descansa regalado,
tenho sono e posso dormir,
tendo comido e bebido sem pagar.
O dia lá fora é quente,
a água na bilha é fresca,
acredito que sugestiono elétrons.
Eu só quero saber do microcosmo,
o de tanta realidade que nem há.
Na partícula visível de poeira
em onda invisível dança a luz.
Ao cheiro de café minhas narinas vibram,
alguém vai me chamar.
Responderei amorosa,
refeita de sono bom.
Fora que alguém me ama,
eu nada sei de mim.