sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Praça de São Sebastião - Mara Senna

Igreja de São Sebastião em Araxá - MG


Praça de São Sebastião


Quando eu era criança em Araxá, Minas Gerais, morei até os meus treze anos, bem ao lado da Igreja de São Sebastião. Tão ao lado, que quando havia missa, dava pra ver e ouvir da varanda ou da janela de casa. O armazém do meu pai também era ali ao lado, e toda nossa infância girava em torno daquela praça.
E no dia 20 de janeiro, depois das noites de novena, acontecia a grande festa do santo. Até hoje sei de cor a música que dizia: " Sebastião santo, de Jesus querido..." ; era pungente, dolente como as flechas que transpassavam o seu corpo e que tanto me impressionavam.
Era grande a fé de todos, em especial da minha mãe, que amava tudo naquela praça de São Sebastião, onde ela também fora criada.
Guardo até hoje  a voz do leiloeiro, gritando as prendas depois das missas: um frango (vivo) oferta do senhor fulano, uma leitoa assada, oferta da senhora sicrano... 'Quanto me dão?'
Guardo o cheiro da pipoca, a cor rosa do algodão doce, a tentação da maçã do amor, a doçura daquelas noites de novena e de festa.
Hoje penso como era tudo de uma simplicidade sem par. Nossas roupinhas de festa, as barraquinhas em frente à igreja, todo o povo bom que morava por ali, aquele nosso mundo onde a maldade parecia não existir.
Depois, nos mudamos dali e, após mais alguns anos, fui eu que me mudei de cidade para estudar em Ribeirão Preto e nunca mais voltei a morar na minha cidade natal.
Outro dia, em uma das minhas idas a Araxá, fui à missa na antiga e linda igreja de São Sebastião. E eis que a saudade da infância, sorrateira, atravessou-me doída como as flechas no corpo do santo. 

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Sem conserto - Mara Senna


Sem conserto

Logo de manhã, ouço o som inusitado do alto-falante do carro que passa pelo meu quarteirão. Ele vai anunciando em uma gravação de qualidade duvidosa e um pouco irritante, que conserta panelas de todos os tipos: caçarolas, frigideiras, panelas de pressão... Oferece novos cabos, novas tampas, conserta furos, devolve o brilho, enfim, resolve tudo. O anúncio parece promissor e redentor para aquelas panelas do meu armário, já tão gastas pelo uso.
Não tenho como não acalentar, neste momento, o desejo secreto de um carro que também passasse logo cedo resolvendo todos os meus problemas; anunciando, em alto e bom som, que poderia consertar tudo aquilo que está errado ou faltando em minha vida. Uma espécie de gênio da lâmpada, só que concedendo não só três, mas todos os desejos que eu quisesse.
Engana-se quem pensa que eu pediria coisa materiais. Não. Para essas coisas sempre se dá um jeito, trabalha-se, conquista-se. Eu pediria coisas mais difíceis; aquelas que escapam à nossa capacidade humana de resolver a contento. Falo do campo das emoções, dos sentimentos, das coisas da alma.
E assim, eu imagino um carro passando todas as manhãs, anunciando poder consertar um coração que foi quebrado em mil pedaços, prometendo deixá-lo novinho em folha. Ofereceria novas peças para repor as partes mais machucadas, a restauração completa dos sentimentos mais feridos, supriria faltas, ausências e saudades, resolveria carências, frustrações e desilusões. ‘Qual é o seu tipo de dor? – nós temos a solução!’, seria o seu bordão.
Porém, depois desse breve devaneio, volto à minha lucidez habitual e me pego pensando se isso não deixaria a vida um tanto quanto monótona e sem graça. Porque vejo que são todas estas emoções que nos movem, que nos fazem sentir vivos. Só o que está vivo dói. Só o que está vivo se arrisca em meio às coisas e por isso se machuca.
Consertar tudo assim tão fácil seria querer invadir o campo da divindade, adquirir onipotência. E o ser humano não foi criado para isso. Não temos vocação para deuses ou semideuses. Nascemos assim, com o coração de carne. Mortais e falíveis e, por isso mesmo, tão complexos e tão interessantes com nossos defeitos e qualidades.
Fazendo ainda a analogia com as panelas, vejo aqui na minha cozinha que as panelas mais gastas, as mais usadas, as que trazem em seu fundo aquela marca de uso cotidiano, são as que mais sabor conferem ao alimento. Não estão mais tão bonitas, é verdade, mas guardam em si a lembrança dos temperos e a valiosa experiência de terem passado várias vezes pelo fogo.  Desse modo, também nós. Passamos muitas vezes pelo fogo das adversidades e somos temperados pelas vicissitudes. Experimentamos o doce e o amargo, o insípido e o salgado demais e vamos aprendendo o delicado tempero da sabedoria.
No cozer da vida, vamos deixando pedaços nossos ao longo do caminho para que outras vidas aconteçam. Vamos perdendo o frescor da juventude, o brilho do novo, a beleza exterior, mas adquirimos essa capacidade de dar mais sabor à existência com as nossas vivências. Apagar as marcas deixadas em nossas “panelas” seria como negar a nossa própria história.
Continuo a ouvir o som insistente do carro das panelas passando pelo meu quarteirão, mas agora vejo claramente que não quero mais que alguém passe consertando tudo. Quero que a vida faça em mim a sua trajetória natural e bonita.
 Não há problema se por aí ficarem partes minhas e que não haja reposição para elas. Deixo assim, sem conserto. E vejo o quanto sou humana e... feliz!

Mara Senna

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Alguém abre um livro - Ruy Castro


Alguém abre um livro

Outro dia, falando num encontro de livreiros, eu dizia que todos nós, que trabalhamos com livros -que os escrevemos, editamos, distribuímos, vendemos ou promovemos-, devíamos nos sentir privilegiados. Nosso produto não anuncia na TV, não é vendido na farmácia junto com os xampus, fraldas e chinelos e, para ser apreciado, precisa ser lido linha a linha e ainda temos de lamber o dedo para virar a página. Mas, toda vez que um brasileiro abre um livro, o Brasil melhora.
Tal afirmação ameaça parecer uma pieguice poética num país que, segundo o novo relatório divulgado pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), pode estar em 73º lugar no ranking mundial de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) -o que, em si, já é uma vergonha-, mas, num dos itens mais importantes, empata com o Zimbábue, que, em 169º no ranking, é o mais atrasado do mundo.
Nossos estudantes passam o mesmo número de anos na escola que os infelizes zimbabuenses -os quais precisam lutar para não morrer de fome em criança ou de Aids em adulto, além de ter de viver correndo do leão. Nossos garotos não têm um leão nos calcanhares e ainda podem empinar pipa na laje ou brincar de médico com a vizinha. Talvez por isto fiquem apenas 7,2 anos na escola, contra 12,6 anos da Noruega, que está em 1º no IDH.
Não se sabe o que os noruegueses fazem com tanta educação. Mas o Brasil também não tem se notabilizado pelos seus cientistas, filósofos ou professores. Na verdade, o que mais produzimos são cabeças-de-área, duplas caipiras e flanelinhas -e, se já é difícil hoje fazer um país com eles, imagine no futuro.
Por isso, quando alguém abre um livro por aqui, é por conta própria, à margem do Brasil oficial. Significa que essa pessoa tem uma meta pessoal e está usando a cabeça para persegui-la.

Ruy Castro

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Três - Antônio Cícero

Três

Um

Foi grande o meu amor
não sei o que me deu
quem inventou fui eu
fiz de você o sol
da noite primordial
e o mundo fora nós
se resumia a tédio e pó
quando em você tudo se complicou

Dois

Se você quer amar
não basta um só amor
não sei como explicar
um só é sempre demais
pra seres como nós
sujeitos a jogar
as fichas todas de uma vez
sem temer naufragar
não há lugar para lamúrias
essas não caem bem
não há lugar para calúnias
mas por que não
nos reinventar

Três

Eu quero tudo que há
O mundo e seu amor
Não quero ter que optar
Quero poder partir
Quero poder ficar
Poder fantasiar
Sem nexo e em qualquer lugar
Com o seu sexo
Junto ao mar

Antonio Cícero

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Não saber - Mara Senna

Não saber

O ano chega pleno de mistérios...
Há quem busque os sortilégios.
Eu, prefiro não saber.
Se a vida é festa,
quero a surpresa.
Se a vida é rio,
melhor deixar fluir.
Se precisar, eu remo.
Se me assustar, eu tremo.
Se doer, eu gemo.
Se fizer graça, eu rio.
Se me seduzir,
eu vou na correnteza.
Se eu volto?
Juro que não sei.
Não saber também é bom...

Mara Senna