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sábado, 4 de junho de 2016

Ausência

Foto de Toda Prosa - Mara Senna.

Uma crônica que escrevi há alguns anos e que ficou guardada até amadurecer o sentimento:

Ausência

Subitamente, o dia azul de abril tornou-se cinza. e embora houvesse muita luz, sol e harmonia naquela manhã de outono, para mim, havia cessado a estação. Tudo ficou opaco e pesado como o chumbo e eu senti afundar o chão sob meus pés. Minha mãe partira para sempre naquela manhã, avisava a voz do meu irmão ao telefone.
Fiquei sem rumo e francamente parva. Anteontem eu havia me despedido dela na porta de sua casa, parecia bem, acenou-me do alpendre com um sorriso. Mal sabia eu que seria o seu último adeus.
Aos meus ouvidos chegava agora o canto de algum pássaro indiferente, e desinformado da minha dor. Eu compreendera assim, num relance, que quando viesse a flor de maio, eu já não iria florir como de costume. Uma névoa circundou-me em um abraço gelado que só a morte sabe dar. Meu coração agora já estava em pleno inverno
Uma dor lancinante cobrava-me dentro do peito o muito que eu perdia assim, tão de repente. E me vinha ao pensamento um verso do Vinícius: “de repente, não mais que de repente do riso fez-se o pranto...”
E até o ‘de repente’ me soava estranho. Eu sabia o quanto eu havia tentado, ao longo da vida, me preparar para esta perda tão previsível, que Cecília, soube cantar tão bem em seus versos: “era uma ausência que se demorava, uma despedida pronta a cumprir-se.” E, no entanto, quando se cumpriu, eu me vi totalmente desprevenida.
Quem disse que a vida permite ensaio? A morte estreia triunfante na sua hora precisa; nem um minuto a mais, nem a menos, estejamos nós preparados ou não. E, na verdade, nunca estamos.
Nas folhas secas do chão, súbito, enxerguei claramente a transitoriedade da vida. Elas simplesmente caem na estação prevista, tornam ao pó e outras folhas nascem, tomam seu lugar e assim o ciclo da vida se repete.
Olhei as paineiras que sempre florescem nessa época. Saltavam-me agora aos olhos os grandes espinhos no seu tronco, contrastando com a beleza rósea e suave das suas flores. Flor e espinho, riso e pranto, prazer e dor: seria essa a receita oculta da vida?
Eu buscava, como que desesperada, aprender de Drummond, a ausência “branca e pegada”, mas a minha, nesse momento, era negra e tinha mais a dureza da pedra do que o aconchego dos braços. Talvez, como disse o poeta mineiro, eu ainda fosse mesmo ignorante dessas coisas e lastimasse a falta. Mas ele que tanto entendeu das pedras, há de saber mais do que ninguém o que sinto e entenderá que também eu “tenho razão de sentir saudade.”
Mas, neste ponto, peço desculpas por ousadamente contradizer Vinícius, e dizer que eu não “deixarei que morra em mim a vontade de amar os seus olhos” tão verdes, nem o som gostoso da sua risada, o carinho das suas mãos nos meus cabelos, a doçura da sua voz. Até que um dia eu aprenda a transbordar tanto dessa ausência, que eu possa quase acreditar que de fato eu tenha voltado a ser feliz. E que nunca mais, nada nem ninguém, possa tirá-la de mim. E eu possa repetir Proust e afirmar que a ausência de minha mãe será para mim “a mais certa a mais intensa, a mais indestrutível e a mais fiel das presenças.”
Que assim seja. E há de ser.
 
Mara Senna
Imagem: Leslie Stahl

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Velhas canções


Velhas canções


O rádio do carro toca flashbacks'', músicas diretas do túnel do tempo: temas de novelas, filmes, coisas de outras épocas douradas, ou pelo menos, que hoje, de longe assim me parecem.
Uma a uma eu as reconheço, e canto bem alto, revivendo as letras.
Nessa hora, sou de novo jovem, sou estudante, sou namorada....

Tenho nos lábios os tons da inocência perdida, no corpo, roupas de outras modas, nos olhos maquiagem de 'dancing days`.
Em que momento será que nos transformamos em velhas canções e nem percebemos?
 
Mara Senna

Vila Rica



Foto de Toda Prosa - Mara Senna.

Vila Rica

Neste dia 21 de abril, dia de Tiradentes, como mineira de raiz que sou, me vem à tona a lembrança de Ouro Preto, antiga Vila Rica, cidade que conheci como a palma da minha mão em tempos de estudante, quando o coração também era de estudante.
Subir as suas ladeiras, andar pelos seus becos e vielas, é como entrar numa máquina do tempo e ouvir de novo os sussurros, as conspirações atrás das grandes portas e janelas.
É ouvir os suspiros de amor das alcovas, os poemas de Dirceu para sua Marília.
É contar os contos dos contos de réis.
É saber que cada uma daquelas pedras seculares traz um segredo, que jamais contarão. Não, as pedras de Ouro Preto não são traidoras como o foi Joaquim Silvério dos Reis. Se delas dependesse, as ruas não teriam bebido o sangue de Joaquim José da Silva Xavier.
Um dia, em uma das visitas à cidade, eu bem jovem, perambulando por suas ruas, perdi uma pulseira de ouro. Creio que deve ter caído em uma das suas infinitas gretas, e ali ficado invisível e inacessível entre as pedras. Talvez tenha ficado ali para sempre. Na época fiquei triste, porque era um presente de minha mãe. Hoje, agrada-me saber que ali deixei meu ouro misturado ao seu ouro negro. É como se, assim, eu tivesse me incorporado à sua história.
Hoje, quando vejo alguém que viaja ao exterior, mas que não conhece Ouro Preto, digo que é, sim, maravilhoso subir as ladeiras de Roma, ou de Montmartre em Paris, ou de São Francisco, que é muito bom subir e descer pelas ladeiras do mundo todo, mas que a sua viagem só será completa quando subir as ladeiras de Ouro Preto; só para encontrar ali a sua própria história na eterna Vila Rica dos sonhos de liberdade.
 
Mara Senna

foto: Google - desconheço o autor

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Ausência

Foto de Toda Prosa - Mara Senna.

Ausência

Subitamente, o dia azul de abril tornou-se cinza. e embora houvesse muita luz, sol e harmonia naquela manhã de outono, para mim, havia cessado a estação. Tudo ficou opaco e pesado como o chumbo e eu senti afundar o chão sob meus pés. Minha mãe partira para sempre naquela manhã, avisava a voz do meu irmão ao telefone.
Fiquei sem rumo e francamente parva. Anteontem eu havia me despedido dela na porta de sua casa, parecia bem, acenou-me do alpendre com um sorriso. Mal sabia eu que seria o seu último adeus.
Aos meus ouvidos chegava agora o canto de algum pássaro indiferente, e desinformado da minha dor. Eu compreendera assim, num relance, que quando viesse a flor de maio, eu já não iria florir como de costume. Uma névoa circundou-me em um abraço gelado que só a morte sabe dar. Meu coração agora já estava em pleno inverno
Uma dor lancinante cobrava-me dentro do peito o muito que eu perdia assim, tão de repente. E me vinha ao pensamento um verso do Vinícius: “de repente, não mais que de repente do riso fez-se o pranto...”
E até o ‘de repente’ me soava estranho. Eu sabia o quanto eu havia tentado, ao longo da vida, me preparar para esta perda tão previsível, que Cecília, soube cantar tão bem em teus versos: “era uma ausência que se demorava, uma despedida pronta a cumprir-se.” E, no entanto, quando se cumpriu, eu me vi totalmente desprevenida.
Quem disse que a vida permite ensaio? A morte estreia triunfante na sua hora precisa; nem um minuto a mais, nem a menos, estejamos nós preparados ou não. E, na verdade, nunca estamos.
Nas folhas secas do chão, súbito, enxerguei claramente a transitoriedade da vida. Elas simplesmente caem na estação prevista, tornam ao pó e outras folhas nascem, tomam seu lugar e assim o ciclo da vida se repete.
Olhei as paineiras que sempre florescem nessa época. Saltavam-me agora aos olhos os grandes espinhos no seu tronco, contrastando com a beleza rósea e suave das suas flores. Flor e espinho, riso e pranto, prazer e dor: seria essa a receita oculta da vida?
Eu buscava, como que desesperada, aprender de Drummond, a ausência “branca e pegada”, mas a minha, nesse momento, era negra e tinha mais a dureza da pedra do que o aconchego dos braços. Talvez, como disse o poeta mineiro, eu ainda fosse mesmo ignorante dessas coisas e lastimasse a falta. Mas ele que tanto entendeu das pedras, há de saber mais do que ninguém o que sinto e entenderá que também eu “tenho razão de sentir saudade.”
Mas, neste ponto, peço desculpas por ousadamente contradizer Vinícius, e dizer que eu não “deixarei que morra em mim a vontade de amar os seus olhos” tão verdes, nem o som gostoso da sua risada, o carinho das suas mãos nos meus cabelos, a doçura da sua voz. Até que um dia eu aprenda a transbordar tanto dessa ausência, que eu possa quase acreditar que de fato eu tenha voltado a ser feliz. E que nunca mais, nada nem ninguém, possa tirá-la de mim. E eu possa repetir Proust e afirmar que a ausência de minha mãe será para mim “a mais certa a mais intensa, a mais indestrutível e a mais fiel das presenças.”
Que assim seja. E há de ser.
Mara Senna

Imagem: Leslie Stahl

Bolhas de sabão

Foto de Toda Prosa - Mara Senna.


Bolhas de sabão


Meu pai sempre foi do tipo sério, até bravo, como era a maioria dos pais na minha época de criança.
Ditava as ordens, e tudo o que nós, filhos, pedíamos para nossa mãe, ela dizia: “fala com seu pai, só se ele deixar. E nós o respeitávamos muito, tanto que, quando ouvíamos o barulho das suas chaves fechando o armazém que se comunicava com a nossa casa, anunciando a sua chegada, cessavam todas as brigas, bagunça e desobediência para alivio da minha mãe, que lidava
o dia todo com aquelas cinco crianças. Além disso, ele nunca bateu em nenhum de nós: bastava um olhar e já sabíamos que era hora de obedecer.
Ele nunca foi, e ainda não é, do tipo efusivo em beijos e abraços, porque também não foi acostumado a isso na infância. Mas sempre foi muito trabalhador e muito responsável. Zelava muito pela nossa proteção, sustento, educação e sempre nos amou muito a seu modo, tenho certeza.
Por isso tudo, pelo seu jeito de ser, uma cena agradavelmente destoante e especial ficou gravada na minha lembrança como um oásis em meio a toda a sua seriedade. Na hora do almoço ou do jantar, enquanto lavava as mãos no lavatório que havia na copa da nossa casa, ele nos chamava para ver as enormes bolhas de sabão que fazia soprando as duas mãos em concha. Eram bolas enormes, descomunais aos meus olhos de criança, verdadeiras façanhas que só as mãos do meu pai poderiam fazer. Era um momento de leveza no seu dia tão atribulado, tenho certeza. Era o seu modo de dar atenção em meio à tanta responsabilidade. Eu entendia, pai, obrigado.
Hoje ele tem 82 anos, continua trabalhando, correndo, lutando, e embora muito cansado e já sem tanta saúde, não sabe e não quer parar. Mas qualquer dia desses, quando ele estiver aqui em casa, vou pedir para ele fazer para mim as tais bolhas. Só para sentir a leveza delas a me transportar para o mundo dos sonhos. Só para eu ser outra vez sua filha criança.




Mara Senna

 em homenagem ao meu pai e a todos os pais.

Se o nosso Fusca falasse

Foto de Toda Prosa - Mara Senna.

Se o nosso Fusca falasse

Na carona das lembranças da infância, me vem a do Fusca que meu pai tinha no final dos anos sessenta, início dos setenta. Na verdade, houve mais de um: lembro de um azul ou verde, não sei bem, e de um café com leite.
A melhor recordação que eu tenho é que nas noites de domingo, saíamos todos: meu pai, minha mãe e os cinco filhos para dar uma volta. Minha mãe se arrumava, vestíamos roupa de domingo e lá íamos nós felizes da vida.
Entre os irmãos, ...
começava a disputa para decidir quem ia nas janelas. Eu, de minha parte, me lembro que adorava ir num "caixotezinho", uma espécie de bagageiro que o Fusca tinha atrás. A caçulinha, bem pequena, ia na frente ( sim, naquela época podia...) em um banquinho que meu pai mandou adaptar sobre o freio de mão.
O passeio consistia basicamente em passar pela rua principal, a Boa Vista, e parar em frente ao Cine Brasil para comprar pipoca do Sr. Durvalino, que sempre nos atendia com um sorriso largo.
Era a melhor pipoca que já experimentei, talvez porque fosse temperada por esse prazer tão simples dar uma volta de carro, o que era um luxo naqueles tempos de poucos luxos.
Se o nosso Fusca falasse, talvez diria que a simplicidade é o verdadeiro luxo, e que quando uma família se reúne, até um Fusca se torna um enorme coração.
 
Mara Senna

foto: desconheço o autor