Está imperdível a programação da 9a. Feira do Livro de Ribeirão Preto, de 18 a 28 de junho. É de altíssima qualidade.
Confiram no site http://www.feiradolivroribeirao.com.br/
Durante a feira, terei a grata oportunidade de ser cicerone do grande escritor Carlos Heitor Cony, de quem reproduzo este maravilhoso texto. Depois da feira eu conto como foi conviver com esta notável figura.
O suor e a lágrima
Carlos Heitor Cony
Fazia calor no Rio, 40 graus e qualquer coisa, quase 41.
No dia seguinte, os jornais diriam que fora o mais quente deste verão que inaugura o século e o milênio.
Cheguei ao Santos Dumont, o voo estava atrasado, decidi engraxar os sapatos. Pelo menos aqui no Rio, são raros esses engraxates, só existem nos aeroportos e em poucos lugares avulsos.
Sentei-me naquela espécie de cadeira canônica, de coro de abadia pobre, que também pode parecer o trono de um rei desolado de um reino desolante.
O engraxate era gordo e estava com calor — o que me pareceu óbvio.
Elogiou meus sapatos, cromo italiano, fabricante ilustre, os Rosseti. Uso-o pouco, em parte para poupá-lo, em parte porque quando posso estou sempre de tênis.
Ofereceu-me o jornal que eu já havia lido e começou seu ofício.
Meio careca, o suor encharcou-lhe a testa e a calva. Pegou aquele paninho que dá brilho final nos sapatos e com ele enxugou o próprio suor, que era abundante.Com o mesmo pano, executou com maestria aqueles movimentos rápidos em torno da biqueira, mas a todo instante o usava para enxugar-se — caso contrário, o suor inundaria o meu cromo italiano.
E foi assim que a testa e a calva do valente filho do povo ficaram manchadas de graxa e o meu sapato adquiriu um brilho de espelho à custa do suor alheio.
Nunca tive sapatos tão brilhantes, tão dignamente suados.
Na hora de pagar, alegando não ter nota menor, deixei-lhe um troco generoso. Ele me olhou espantado, retribuiu a gorjeta me desejando em dobro tudo o que eu viesse a precisar nos restos dos meus dias.
Saí daquela cadeira com um baita sentimento de culpa. Que diabo, meus sapatos não estavam tão sujos assim, por míseros tostões, fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão.
Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele brilho humano, salgado como lágrima.
O texto acima foi publicado no jornal “Folha de São Paulo”, edição de 19/02/2001, e faz parte do livro “Figuras do Brasil – 80 autores em 80 anos de Folha”, Publifolhas – São Paulo, 2001, pág. 319, organização de Arthur Nestrovski.
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